Escolaí: um programa que enxerga a educação básica como aliada da inclusão produtiva

Resumo
O desafio da inclusão produtiva das juventudes constitui um tema essencial ao desenvolvimento do país, cujas estratégias devem ser lidas à luz da educação básica e da capacitação profissional. Preparar adolescentes e jovens para um mercado de trabalho em acelerada transformação implica em desenvolver novas metodologias que auxiliem o projeto de vida dos estudantes e que favoreçam o engajamento dos estudantes na aquisição do conhecimento. Sabe-se que o baixo nível de instrução, decorrente de uma crescente evasão escolar – a partir dos 16 anos de idade, as taxas de evasão são entre 15,8% e 18% –, implica em futuras barreiras para o desenvolvimento da carreira profissional e do livre exercício da cidadania. As novas demandas do mundo do trabalho no século XXI, quando não atendidas, são vetores da perpetuação da exclusão social. Alinhada à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), uma iniciativa da Fundação Otacílio Coser tem mostrado que investir na educação com o suporte da inovação é uma resposta que está à altura do desafio de educar para o futuro. O Programa Escolaí chega à maioridade, comprovando que a aliança estratégica com escolas públicas e secretarias de educação – do Espírito Santo e de São Paulo, além de Goiás, participante por dois anos – tem sido um ferramental importante para apoiar o Projeto de Vida dos estudantes via metodologia que envolve a tríade Cabeça, Coração e Mãos. Na prática, o reposicionamento desenvolvido pela organização, a partir da escuta das escolas, resulta em uma iniciativa que além de promover o protagonismo juvenil se alinha à inclusão produtiva à medida que aumenta o vínculo dos estudantes com a escola, desenvolvendo competências e habilidades importantes para o mundo do trabalho.
Introdução
Há 18 anos, a Fundação Otacílio Coser lançou o Escolaí, tendo como aliadas estratégicas as Secretarias de Educação e Diretorias de Ensino de alguns Estados brasileiros. Estruturado pelo professor Antonio Carlos Gomes da Costa, um dos principais formuladores do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e inicialmente conhecido como Programa de Educação Voluntária (PEV), a iniciativa deu origem a uma mobilização cujo objetivo é promover o protagonismo dos estudantes de escolas públicas do Brasil. Em 2023, o programa chega à maioridade e, em fase de consolidação, provou ser uma ferramenta eficaz de apoio para os estabelecimentos educacionais desenvolverem o Projeto de Vida1 dos estudantes, uma demanda, inclusive, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)2 e que dialoga com a inclusão produtiva.
O formato de gincana, parte importante da metodologia, propicia o engajamento de toda a escola à medida que convida os estudantes a realizarem missões colaborativas que estimulam os jovens a refletirem sobre temas atuais e relevantes para a própria vida e para o futuro da sua geração. Esse agir e pensar no coletivo dialoga com o mundo do trabalho e a cultura colaborativa – que é muito valorizada em ambientes profissionais. No cerne da iniciativa, para além do exercício prático do protagonismo juvenil, destacam-se o estímulo à transformação positiva do clima escolar; o aprofundamento do envolvimento familiar na escola e o desenvolvimento do senso de comunidade; e o apoio a ações complementares desenvolvidas pela escola para combater a evasão escolar.
Como base sólida para a formação dos estudantes, o Escolaí dialoga com a inclusão produtiva ao desenvolver habilidades para a realização do Projeto de Vida, facilitando a inserção dos jovens adultos no mundo do trabalho; fomentando a autoestima, o entusiasmo e a capacidade de sonhar – sobretudo entre alunos em situação de vulnerabilidade social e econômica, que enfrentam desafios que os impedem de projetar futuros mais prósperos –; instrumentalizando o indivíduo para que possa identificar novas perspectivas de futuros e ampliar o próprio poder de escolha; fortalecendo a criação de novos vínculos com a escola, que promovam a noção de pertencimento e valorização da escola e da educação.
Aumentar o vínculo entre escola-estudante – conscientizando os atores sobre a importância da conclusão da educação básica por meio do desenvolvimento de atividades que permitem a construção de um ambiente de aprendizagem significativo – é um dos focos do programa, que fala diretamente com um sério problema brasileiro. No país, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 80% das escolas da rede pública atendem mais de 80% dos alunos do ensino fundamental e médio; dos 10 milhões de jovens brasileiros entre 14 e 29 anos de idade que deixam de frequentar a escola sem ter concluído a educação básica, 71,7% são pretos ou pardos, sendo que a maioria afirma ter saído da escola porque precisava trabalhar.
As implicações para o futuro desses jovens e do país são imensas. No Brasil, a cada ano, meio milhão de jovens chegam à fase adulta sem concluir a educação básica; o cálculo da perda que isso representa (para os jovens e para o país) é de R$ 395 mil por indivíduo – cálculo que leva em consideração as diferentes dimensões de empregabilidade e remuneração, externalidade econômica, longevidade e qualidade de vida e cultura de paz. Quando é considerada a tangibilidade do dano em perda por jovem que não concluiu o ensino básico, o custo total para a sociedade chega a R$220 bilhões. De acordo com o economista Ricardo Paes de Barros, em um estudo do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) – Consequências da violação do Direito à Educação Básica (2020) –, no qual esses dados estão compilados, esse cenário considera o custo para o Estado, uma vez que esse cidadão passará menos tempo em empregos formais, terá menor expectativa de vida com qualidade e tenderá a um maior envolvimento em atividades violentas como homicídios. “(…) Estamos falando que o custo de o estudante não concluir é quatro vezes maior do que o que estamos dispostos a gastar para construir esse projeto de educação”, afirmou o pesquisador durante videoconferência de lançamento e debate do estudo. É importante acrescentar, conforme o pontuado na página 10 do estudo: “O tamanho dessa perda pode ser melhor captado considerando-se diferentes parâmetros: ela equivale a dois terços do gasto público anual com a educação básica de mais de 40 milhões de estudantes; 3,3% do PIB nacional e mais de quatro vezes o custo total por estudante referente a uma trajetória regular de 14 anos de educação.
Diante da emergência do país de endereçar respostas concretas e propositivas ao desafio da educação básica, o Programa Escolaí se dedica a construir pontes entre a educação e o mundo do trabalho, objetivando gerar renda estável e trabalho digno – no futuro –, além de potencializar ações que rompem com o ciclo de transmissão da pobreza intergeracional. No cerne, a organização cria conexões e oportunidades para potencializar as juventudes.
Metodologia e objetivos
Baseado na crença da educação integral do ser humano, o Escolaí oferece às escolas públicas do Brasil uma ferramenta complementar para fortalecer as atividades de formação em Projeto de Vida, de forma integrada, colaborativa e protagonizada pelos estudantes. A gincana foi formatada para que os estudantes vivessem experiências que, ao longo dos anos, fomentaram um comportamento de autoconhecimento, autoconfiança, empoderamento e senso de coletividade – elementos essenciais para que esse cidadão consiga projetar o próprio futuro. Nessa metodologia, como foi apontado anteriormente, a aprendizagem é baseada na tríade conhecida como Cabeça, Coração e Mãos, que envolve o uso do intelecto, dos sentimentos e das atividades práticas.
O engajamento dos adolescentes e jovens ao Escolaí propicia o desenvolvimento de competências e habilidades alinhadas à Base Nacional Comum Curricular, além de sinergia com demandas educacionais do mundo do trabalho, facilitando a realização do próprio Projeto de Vida e da inclusão social. Na prática, as escolas integrantes devem formar três times responsáveis pelo planejamento e pela liderança (guardiões da juventude) para a realização de quatro missões (sendo a primeira comum a todas as escolas e as demais podem ser escolhidas entre os temas Cidadania e ODS; Cultura, esporte e lazer; Mundo do trabalho e inovação). Os times planejam a parte tática e a comunidade escolar (que envolve todos os atores da escola) participa das missões que, após a realização, libera os times para registrar as evidências do processo e a conclusão das missões – além de um questionário individual em uma plataforma. As 20 escolas com maior pontuação no ano são premiadas.
Em específico, a metodologia envolve o desenvolvimento das competências: comunicação (demanda trazer a escola para um objetivo comum, exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos, a escuta ativa, fazer-se respeitar, promover o respeito aos outros, observância dos direitos humanos com acolhimento e valorização da diversidade); coragem (envolve o engajamento em missões, o pensamento crítico e a capacidade de transformar teoria em ação, assumindo riscos de forma segura para alcançar os objetivos de longo prazo); ética (demanda a aplicação de valores humanos sobre o comportamento, resultando em uma postura transparente, respeito a acordos e aos códigos de conduta do ambiente ao qual se pertence); e responsabilidade (contempla agir com integridade e respeito para com a comunidade escolar, trabalhar com determinação, organizando o tempo estrategicamente para contemplar cada missão, estar atento e considerar regras e prazos).
Em paralelo, são trabalhadas habilidades cognitivas (criatividade, pensamento crítico e reflexão); sociais (empatia e colaboração); autogerenciamento (autocuidado, organização e planejamento); pesquisa (cultura digital e uso ético da informação); e habilidades de comunicação (troca de informações, capacidade de ouvir, interpretar e falar, uso da tecnologia da informação para a melhor comunicação).
Conexão com a inclusão produtiva
O estudo O Futuro da Inclusão Produtiva no Brasil: da emergência social aos caminhos pós-pandemia (2020) – coordenado pela Fundação Arymax e pela B3 Social, e conduzido pelo Instituto Veredas – aponta que entre os diferentes grupos etários do país, os jovens foram especialmente atingidos pela pandemia. “(…) A interrupção ou o abandono dos programas educativos, a redução das vagas de entrada no mercado de trabalho e a perda de emprego e de renda podem gerar, entre os jovens, efeitos de longo prazo em suas vidas profissionais, configurando as características da ‘geração lockdown’. Assim, é preciso encontrar estratégias que facilitem a inclusão de pessoas especialmente em posições de entrada no mercado de trabalho, sendo essa uma questão particularmente relevante para os jovens.”
Nesse contexto, insere-se o Programa Escolaí. Para potencializar a conexão da escola com o futuro profissional dos estudantes, o programa (que investe em gamificação, conteúdo qualificado, networking e mentoria) está aprimorando as trilhas propostas. Além da gincana – focada no desenvolvimento de habilidades, com indicadores e métricas de acompanhamento voltados aos jovens –, a iniciativa contará, no futuro, com o Hub, no qual as oportunidades de desenvolvimento e geração de renda de organizações parceiras são disponibilizadas aos alunos das escolas participantes e ex-alunos, tendo por condição a conclusão dos estudos.
Mapa de evidências: histórias de transformação
O impacto social positivo do Programa Escolaí pode ser demonstrado em números contabilizados ao longo das edições. A iniciativa, nos últimos três anos, envolveu 83 escolas brasileiras, mobilizou 118.213 estudantes de três Estados; em 2022, dois Estados integraram o programa, 48 escolas e 40 mil jovens foram impactados positivamente pela iniciativa. Embora o Mapa de Evidências esteja em construção, é possível verificar uma crescente expansão: em 2023, o programa selecionará 70 escolas de Ensino Fundamental II e/ou Ensino Médio. A meta para 2030 é chegar a 25 Estados, beneficiando 10 milhões jovens de oito mil escolas.
Para além dos números, os depoimentos compõem um mosaico de transformações pessoais. Um dos exemplos pode ser encontrado na Escola Estadual Maria Trujilo Torloni, localizada em São Caetano do Sul, São Paulo. Os gestores da escola – que conta com 430 alunos em horário integral – apontam que a participação no Escolaí contribuiu para tornar a comunidade mais colaborativa e os estudantes mais participativos. Zaher Osmam, 18 anos, vai mais longe ao definir o impacto do programa. “Eu fui impactado pelo Escolaí. E acho que o conhecimento tem que ser compartilhado. O Escolaí, junto com a escola, quebra sua timidez e faz você ser proativo. É um papo de jovem pra jovem, mais leve. Eu senti [a escola] como se fosse uma segunda casa” e finaliza, com uma ponta de saudade: A gente sai da escola, mas a escola não sai da gente.” A professora de Língua Portuguesa, Jussara Aparecida Valadão, acrescenta: “É empolgante ver essa transformação na vida deles. É o que eu acredito que seja a educação. Isso faz a gente ter esperança.” Na visão da diretora Jomara Correa Palmieri, ao avaliar os resultados da Gincana, é possível concluir que essa experiência marca a formação e impacta, positivamente, a vida futura dos alunos.
Considerações finais
Desde 1999, a Fundação Otacílio Coser atua para promover a transformação da realidade social do Brasil, inspirada pelo espírito empreendedor do fundador do Grupo Empresarial Coimex, Otacílio Coser. Na análise da Fundação, o distanciamento dos jovens do mercado de trabalho constitui um desafio central para o futuro do país. O começo da vida profissional no setor informal – aliado à não conclusão do ensino médio – é um fator-chave que pode comprometer a trajetória do jovem durante anos. Nesse contexto, a Fundação atua para a inclusão produtiva, construindo pontes entre a assistência social, educação e o mundo do trabalho. A intenção é contribuir para a superação de processos crônicos de exclusão social, por meio do empreendedorismo e da empregabilidade, criando conexões e oportunidades para potencializar a juventude.
1- Pilar pedagógico fundamental da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Projeto de Vida tem, entre as atribuições, orientar a escolha de itinerários formativos oferecidos pelo Novo Ensino Médio. No cerne das atribuições está trabalhar o socioemocional e as competências do século XXI, preparando o jovem para a vida adulta e o mundo do trabalho. Na definição da BNCC, “valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais, apropriar-se de conhecimentos e experiências que possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu Projeto de Vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. Para além da competência específica, o texto da BNCC reconhece, em diversas partes da íntegra que descreve o Projeto de Vida, a importância do desenvolvimento humano global e integral, cujas premissas a serem observadas pelos atores sociais (educadores, especialmente) são: complexidade e não linearidade da formação; ruptura com visões reducionistas que privilegiam a dimensão intelectual e/ou afetiva; educação voltada ao acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento, em suas singularidades e diversidades.
2- A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), parte do Plano Nacional da Educação (PNE), é um documento de caráter normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento. A BNCC do ensino infantil e do ensino fundamental foi homologada em dezembro de 2017; a do ensino médio, somente um ano depois, em dezembro de 2018. Com o documento, as escolas passam a ter clareza de quais competências são esperadas que os estudantes desenvolvam durante a educação básica. Para a BNCC, competência pode ser definida como a capacidade de mobilizar conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
Palavras-chave: Protagonismo juvenil. Autonomia. Cidadania. Protagonismo. Poder de escolha. Inclusão produtiva. Educação para o futuro do trabalho.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília. MEC, 2018.
BRASIL. Insper. Consequências da Violação do Direito à Educação. 2020.
https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2022/03/Conseque%CC%82ncias-da-Violac%CC%A7a%CC%83o-do-Direito-a%CC%80-Educac%CC%A7a%CC%83o.pdf
BRASIL. Fundação Arymax e pela B3 Social, e conduzido pelo Instituto Veredas. O Futuro da Inclusão Produtiva no Brasil: da emergência social aos caminhos pós-pandemia. 2020.